terça-feira, 7 de junho de 2011

Atiaîa

Pisco Del Gaiso

 Leandro Ramires Rodrigues
     De um apartamento de classe média, Iurema observa pela janela a geografia que apaga o aracê da zona leste de São Paulo. Imagina-se pequena entre aqueles prédios vizinhos e mutuados de gente sem propósito. Lá na caatinga o verde das matas transborda a humanidade de vida a romper zênites que para o homem branco seria impossível.
     Karajá sonhava em estudar em São Paulo. Iurema que era a irmã mais nova achava estranha essa vontade de branco em índio. Não dizia nada porque além de ser mais nova, sabia que ninguém lhe daria atenção. Havia ganhado o respeito na aldeia quando Ci lhe entregou a vida de Taîasu em suas mãos. Alimentava aquele bicho como se fosse o próprio filho; para o Pajé, a vida contida nos seios de Iurema era a resposta que Ci dava a modernização da aldeia. O índio não deveria perder o contato com a natureza, onde todas as vidas estão contidas em uma só.
     Não era nenhuma novidade para Iurema alimentar um porco; foram os olhos do Pajé que desenharam um novo destino para aquela ação. Nessa época, Karajá se encontrava em São Paulo cursando educação física em Santo Amaro. Foi através do irmão que Iurema teve reconhecimento no Brasil, pois o irmão havia servido de amanajé de seu povo; ainda que de forma involuntária, quando saiu da faculdade no período da manhã, lá estava o fotógrafo da Folha de São Paulo. Queriam realizar uma reportagem na aldeia e o acaso os levou lá em Mato Grosso, onde Iurema foi fotografada amamentando Taîasu. 
     Iurema lembrava bem as palavras do Pajé a respeito da lenda de Tapeyára. Houve uma época em que um cari fora ao mato casar porcos para a alimentação de sua família. Encontrou uma porca com vários leitões. Cari não pensou duas vezes em escolher a mãe que era mais gorda. Matou. Os outros perseguiram-no até que cari subiu em uma árvore onde do alto consegui exterminar mais três porcos furiosos. Os animais cavaram até a raiz da árvore, derrubando cari que fora levado à presença de Tapeyára, mãe de todos os porcos. Cari ficou aprisionado. Durante esse tempo comeu uixis, buritis ou biribás que era o alimento que os porcos davam a ele. Cari, um dia, se deitou a sombra de uma árvore, à beira do rio e, quando todos os porcos dormiam, ele a escalou e passou pelos galhos de uma árvore para outra, saltou n'água e se escondeu na copa de uma árvore do outro lado da margem. Havia levado a herá deles consigo. Quando se aproximava do aracê, os porcos descobriram a sua fuga e cercaram todo o igapó à sua procura sem, ao menos, descobri-lo. Ele retornara a casa, onde encontrou mulher e filhos que já o imaginava morto em algum lugar da caatinga. Ele convidou a mulher, o irmão e toda a família para caçarem os porcos da sua companhia. Ficaram todos na canoa. Cari soprou duas vezes a herá. Logo surgiu, em tropel, um gigantesco número de porcos, dos quais ele matou a maioria. Passaram se vários arás até que apareceu seu outro irmão, vindo de uma terra longínqua. O irmão perguntou como cari havia matado tanto taîasus. Roubou a herá do cesto do irmão e ainda zombou dele por ter sido capturado pelos animais. Ele foi pelo caminho da terra e soprou a herá que estava com cari. Os taîasus chegaram e o caçaram sem piedade, foi comido vivo pelos porcos. E outra vez a herá voltou a Tapeyára, mãe de todos os porcos.
     Lembrar histórias desse tipo perdera o sentido. Da janela, Iurema observa o carro do corretor de imóveis. Venderia tudo, incluindo os móveis do irmão. E voltaria para a aldeia. E mesmo assim não escaparia da presença dos brancos. O homem branco havia construindo outra floresta, artificial, mas que aos poucos estava engolindo toda a caatinga, todo o verde, toda a vida. O mesmo acontecera com a foto, Iurema havia achado engraçado quando o irmão havia lhe contado que em um curso de literatura que por acaso resolvera frequentar em Santo André. Ali foi mostrada a imagem da irmã amamentando Taîasu, um rapaz do curso afirmou que a foto não era foto. Iurema era só uma japonesa fantasiada de índia. Não entendia o porquê uma imagem, não era mais uma imagem para os brancos.  Era sempre homem branco que vez ou outra aparecia na aldeia e era bem recebido por todos, como é o caso do professor Ítalo que os visitara recentemente, quando a morte do irmão já saíra dos jornais para se tornar menos que uma nota de rodapé na memória da grande História.
     Ítalo também havia recebido em casa o cacique da aldeia, junto com um grupo que chegava a quase vinte índios, pensara ingenuamente que receberia três ou quatro índios em sua casa no Rio de Janeiro; comprou várias alfaces, legumes, tudo na feira. Depois das duas viagens na van, o cacique havia lhe dito que alface, eles comiam na aldeia. Queriam pizzas. Por um momento, Iurema riu ao lembrar essa história que Ítalo lhe havia contato, quando retornara com os índios a aldeia. O cacique e todos os outros viam com bons olhos aquele pequeno romance de Iurema com Ítalo, pensavam que ele seria aturasá, não era, e por isso foi embora. Era mais fácil um índio se tornar branco, pensara Iurema. Também lembra constantemente das palavras do cacique que dizia não entender homem branco. Quando visitara Ítalo, eles passaram em um mercado, lá fora um dos índios apontava para um mendigo escorado no muro do mercado. Olha lá! Tá com fome, não entendo homem branco, aqui dentro cheio de comida e lá olha, passando fome! Quer comida... Não entendo.
     Hoje nada disso mais traz alegria. Karajá havia sido agredido na cidade de Parelheiros quando foi visitar, longe de minhas vistas, um amigo guarani. Encontrou outro que estava embriago e sendo espancados por dois caris. Os caris, penso eu, são o añaretá do índio. Alguns são de alma aeté, como é o Ítalo. Ainda me lembro de meu irmão naquele hospital de Goiás, antes de chegar a nossa aldeia. Morreu de traumatismo craniano, dias depois. Lá o branco não será mais festejado. Toca a campainha, Iurema sabe que ao se livrar do corretor; voltara à aldeia e Taîasu irá se tornar parte da grande atagûasu.

sábado, 4 de junho de 2011

CACOS DE UMA VIDA INÚTIL


Flávio Mello
Qual será a real diferença entre a bunda de uma mulher e o resto da vida, não por que quando eu caminho fico olhando para elas, nesse momento a vida se esvai no ato, e as mulheres se tornam porta-bundas, apenas isso, ele pensa, ignoto como é, ao descer do ônibus e caminhar pela praça em direção à Radial Leste, trajeto arbóreo e compassado de todo santo dia.
CACOS DE UMA VIDA INÚTIL
ou tanto faz
Chove muito...
O metrô lhe parece algo surreal, não compreende o dispositivo, nem tenta, para ele tanto faz, utiliza-o muito pouco, assim como os hospitais e os bancos, odeia ambos, como odeia fila e a espera nos bancos em corredores sujos, longínquos que cheiram a infecção. Pensa nisso enquanto acomoda o aparelho de MP3 no bolso de moedas da calça, Engraçado, esse bolso, será que alguém o usa, se pergunta, metafisicamente, tanto faz, continua seu caminho. Passa pelos mesmos transeuntes, talvez só os carros não sejam os mesmos, na banca de jornal as revistas de putaria em evidência, Será que esses caras só vendes esse lixo, as de fofoca também têm destaque, alguém na novela ficará pobre e será pego traindo a protagonista, Eu queria ser como o Zé Mayer, de presença, a mulherada deve ficar toda serelepe com o cara, é, ser Zé Mayer deve ser bacana, beijar a morena da novela, qual é mesmo o nome dela..., ah tanto faz.
Uma moça de capa segue o mesmo caminho, mais atrás, sem guarda-chuva, pensa em oferecer-lhe o seu, ou caminharem juntos, mas esses dias de serial killer por ai é foda, ela se assustaria, nem todo mundo é dado a gentileza nesse inferno em que vivemos. Ao entrar no corredor do metrô percebe que não havia fechado o guarda-chuva e um imbecil fica rindo dele, um riso apodrecido, pobre de pessoas ignorantes, daqueles que passam as noites em casa vendo Superpop ou Pânico na TV, ou pior, Gugu, Ele mudou de emissora, eu acho, tanto faz, idiota. Fecha o guarda-chuva e com o olhar diz ao cidadão, Vai tomar no cu.
Uma senhora lhe estende a mão, pede esmolas, não gosta do que vê, mas se acostumou, antes quando era mais sensível chorava ao ver mendigos, pedintes, cegos ou aleijados pelas ruas, se lembra de uma vez em que uma família procurava restos de carne em um caminhão que recolhe os ossos nos açougues, passou o resto do dia chorando, na época era digitador de uma empresa de válvulas em São Bernardo do Campo. Hoje não, só criança consegue arrancar dinheiro dele, ou seja, continua sensível e menos idiota.
Outra bunda passa por ele, muito linda, não pode dizer o mesmo do suporte dela, mas é a vida, a mulher que passou não pode ter tudo o que quer, uma bunda linda daquelas e ainda ser maravilhosamente linda, complicado. O MP3 muda de música, ele nem percebe, o fone de ouvido já é parte de seu corpo, a música é apenas estado de fuga, odeia ouvir as conversas das pessoas, todas medíocres e inacabadas. A vida poderia ser menos nociva, veja bem leitor, a persona em questão não é amarga, apenas não anda na melhor fase de sua vida, está no limite, esperando a gota d’água para transbordar ou rebentar o dique.
Pensa em uma moça que há muito não encontra, a vida não anda fácil para ele, quer um refugio, mas falta coragem, em sua vida mulheres se despregam do andor da pureza e mostram suas garras vermelhas e o odor de luxúria, mas ele tenta, tenta manter-se fiel ao casamento, que tanto faz para ele nessa altura.
A vida é mesmo um aquário onde nós os homens somos os polvos molengas e sem cor, as mulheres peixinhos coloridos, o tempo uma moreia, o mundo se prende nas paredes transparentes do existir e as complicações, as dores, os amores, a ração medíocre que recebemos de Deus. Bela merda de vida, pensa ele olhando o céu que não para de suar. Na verdade a vida é uma matemática, como ele é, sempre foi, terrível nessa área... sofre as consequências de não entender a tabuada.
22h 30

A MISSA


Regiane Coutinho

Num domingo pela manhã, estávamos tomando café quando notei que o Pedrinho ainda não tinha saído da cama, fui até o quarto pra apressá-lo, pois íamos à missa.
– Vamos meu filho, larga essa preguiça e levanta!
– Não papai, não gosto de missa prefiro dormir. Pois é, os filhos sempre carregam algo nosso.
– Acho que hoje você precisa ouvir uma história sobre seu pai.
– Adoro ouvir histórias papai, pode começar.
Todo domingo, quando o papai era garoto, era a mesma ladainha, cobria a cabeça quando ouvia o barulho do chinelo da vovó arrastando na cozinha para passar um café bem forte se fosse fraco já era motivo de briga, e se acontecesse isso era capaz do meu pai desistir de acompanhá-la.
Mamãe era tal como uma beata, era sagrado no domingo pela manhã ir a missa, mas eu não gostava  de fazer  parte desse momento, porque não ficar em casa dormindo até tarde? Ela insistia em me chamar:
– Zino, levanta você vai atrasar todo mundo.
Esse era meu apelido, um garoto pequeno, é... franzino, daí até no adjetivo encontraram um diminutivo e pegou.
Inventei febre, dor de barriga e nada adiantava, levantava me arrastando até a cozinha enquanto maquinava um plano observava meu pai mergulhando seu imenso bigode na caneca de café.
– Jesus, Maria e José o povo já está saindo vamos seus lerdos.
Como nosso bairro era muito pequeno saíamos como numa procissão, todos juntos os vizinhos se cumprimentando, as mulheres colocavam as fofocas em dia, era nesse momento que eu andava feito caranguejo.
Quando a mãe dava fé, já era tarde ela já estava na porta da igreja e eu na porta de casa.
Os anos foram passando enfim chegou minha juventude, mas a missa ainda não frequentava.
Até que conheci a Gerusa, ela era uma moça linda, seu sorriso dizia tudo que eu precisava saber, eu a conheci na missa, esperava por sua vó na porta da igreja, fiquei apaixonado. A partir desse dia assisti muitas missas e o dia mais marcante foi diante de um Padre no dia em que eu disse:
– Até que a morte nos separe.
– Papai que lindo! Então vamos logo, mudei de idéia e a mamãe não gosta de atrasos.

III – Lobos


 Leandro Ramires Rodrigues

O riso risca seu rosto em fase de meia lua
A lua não revela à alma ao Viajante que continua...
Dentro de ti há um sangue ausente e um veneno crescente
Dentro de mim há um espelho que me viaja a lugar nenhum,
Minúsculo grão
E os dentes que deforma a boca e se alimenta d’alma...
Da janela meus olhos alcançam o Viajante em fantasia de soldado
A terra lhe dorme o sono de rios contidos em soltos copos

                                       
Um cão sem dentes é a boca do homem em manta de universo
Ainda não sei a resposta que o Viajante dará a vida,
A vida me faz uma resposta em fantasia de terno e gravata
A vida para alguns é uma voz e para tantos um ouvido
Fecho a janela e percebo que nem a casa havia
O espaço aberto é minha cama ou outro momento da cabeça
O cão sou eu que estendo a mão para o Viajante,
Antes que a noite floresça em sol e o horizonte cresça


II – À noite.




                                        Chego ao morro com o peso do corpo e morro,
                                        Do outro lado o espaço se rasca ao som do samba
                                        Essa festa é a roupa que lhe empresta a morte
                                        Viro fantasma e atravesso a parede
                                        O Viajante está no meio de proibidas fumaças vivas
                                        Na sala, os pais contam a Miséria e espera o Viajante
                                        Viagem de todo dia na cidade alma, concreto de ilusão
                                        Volto para meu quarto: - onde eles estão?

                                
                                        O convite me apertou a mão além da parede
                                        Alegria da noite molda a figura de tristeza na manhã
                                        E o grito me rompendo a mente como sol apaga o abismo
                                        O Viajante reduzido de amores é resíduo de família
                                        Antes o eu nele existia como um sorriso sem verniz
                                        E o tempo dos pais está lhe rascando o bolso carne,
                                        Rosto de uma arquitetura sem memória destrói o Viajante
                                        No trabalho, o bom dia lhe revela o afago da desgraça



Leandro Ramires Rodrigues

Percepção



Leandro Ramires Rodrigues 

                   Para Wall.
Teus olhos de árvore em fogo transluzem,
o amargo frio que respira o eco de minh’alma
Assim és sol e talvez uma neblina que se vai a estio,
e envolve em manta os mornos olhos de teu amigo


E faz da tua geografia um rosto inclinado a luz do sagrado
Enigma que vejo ao vento dançando em teus cabelos sem agrados
Como uma estrela rela ao mar a deserta luz que lhe sobrou na manhã calma
Assim és no mundo, flor de lótus, cujos olhos respiram uma yelda oculta no infinito...


imagem: http://renaclo.blogspot.com/2010/06/blog-post.html

Abstrato


Leandro Ramires Rodrigues 




Um retrato em retalhos de imagem em bordas de mares d’agonia
quando translúcidas águas reluzem o lume da vida no meio
eu nomeio tantas vozes no silêncio dos olhos da madrugada
e o riso se torna em máscara mas cara do mundo são plumas
contornam um rosto em tantos traços o mesmo carnaval, o ritmo
explosão que se mistura no desenho do concreto à imagem da margem
Pulsam palavras, oceanos repelem mares, como ondas de vapor


O tom, som, cores e flores não fazem o desenho – são!
arquitetura lingüística que risca a gilvaz de tantas almas
porta aberta ao nada que sai do nada como entra aos olhos a chuva
transborda em cachoeiras de avenidas a memória do espelho
geometria de cidades, corpos ocos no vazio espaço do papel
e a esperança consome a luz, raspa o verniz e fica o desespero
Sem máscara o abstrato é o ritmo da vida em fulgor de mil sóis

História de amor entre dois opostos


Maria de Fátima de Souza           
No final dos anos 80, a jovem Sophya conhece, por acaso, um rapaz galês. Apesar dos dez anos sem praticar o idioma inglês, ela decide fazer sua primeira viagem internacional, sem a ajuda de um especialista em viagens, para conhecer seu príncipe.
            Ao chegar ao País de Gales, era aterrorizante o sotaque dos nativos. Tinha a velocidade de uma metralhadora, ou seja, equivalente aos nordestinos conversando em dia de festa. Apesar da dificuldade com o idioma, a brasileira seduz até a calorosa família Jones e outros vizinhos locais.
            Philip nunca saiu do país de origem. Desde os dezoito anos que seus passeios não ultrapassam o entorno (no máximo 1 km) da residência. O jovem apaixonado tenta engravidar a namorada brasileira para obrigá-la a se mudar definitivamente para aquele país. O galês, branco como a neve, algumas vezes até sonhava que era pai de uma filha “mulatinha”, desafiando as leis da genética. Os sogros galeses também apóiam, com veemência, essa gravidez. Na segunda visita de Sophya àquele país, julgavam que seria para fixar residência no condado de Bridgend, berço da família.
            A brasileira, filha de mineiros de BH e desconfiada por natureza, achou que tinha “gato naquele balaio”. Assim, seus dois grandes amores do Brasil (sua mãe e seu amado cachorro Puppy) vencem a batalha do “coração dividido”.
            Philip, desesperado pela insegurança de Sophya e, por vingança, se casa com uma polaka. Desde então começa uma batalha “feroz” entre uma ex-futura nora e uma sogra (que compra as dores do filho) que nem falam o mesmo idioma. 
            Após oito anos, o galês ainda tenta recuperar o amor da jovem serelepe do passado que hoje vive no Brasil.

Campanha de Aleitamento Materno:

“Aonde come um, comem dois”
Atividade 2

Maria Souza


Foto: “Índia amamenta filhote de porco do mato” [1]

           O famoso publicitário carioca, Naim, passaria um período das suas férias no Estado do Maranhão. Tinha a fotografia como hobby. De antemão, sabia que no retorno ao trabalho, seria o responsável por uma campanha com “perfil agressivo” para incentivar o aleitamento materno. A campanha foi solicitada por um órgão de saúde do Rio de Janeiro após verificar o aumento das despesas com essas crianças.           
            Chegando ao noroeste do Maranhão, só restava ao aprendiz de fotografia desbravar a região, registrar a fauna e flora local e a conhecer os costumes da tribo dos Guajás [2]. Alguns dias depois, se assustou ao ouvir um grunhido vindo das folhagens. Seria algum animal predador? Trêmulo, tentou se esconder, mas estarrecido presenciou uma cena que mudaria sua vida. Três personagens locais: uma índia, levemente inclinada, segurava seu filho no lado esquerdo e à direita, em pé, um porquinho do mato sugava o seio da “mãe adotiva e caridosa”. Arranjou força para tentar uma aproximação. A índia Taynah entendia a linguagens dos brancos e disse que tinha leite suficiente para seu filho Irapuru (indiozinho mestiço) e também para Baby, seu porquinho companheiro de caminhada pela mata.
            Com a esperteza de uma raposa e a sagacidade de um excelente profissional, explicou à índia qual era sua profissão. Com um lampejo de coragem, perguntou se a Funai intermediasse, ela aceitaria a sagrada missão (enviada pelos pajés) de representar uma campanha de amamentação nacional. O retorno desesperado de Naim à hospedaria e a breve e agitada ligação telefônica para o RJ eram indícios do fim antecipado das férias do publicitário e da resposta afirmativa da índia.
            Quando o representante da Funai, o porquinho Baby e Taynah mais Irapuru (ambos vestidos a caráter) andavam pelas ruas do Rio, causavam o mesmo espanto e paralisação de uma famosa personalidade internacional em visita ao Brasil. A reação da população carioca ao vê-los era um misto de riso, incredulidade e admiração pela originalidade. Em contrapartida, os indígenas não acostumavam com o luxo do hotel e sentiam-se dentro de uma nave espacial. Na rua, Taynah e Irapuru viam os pedestres como marcianos. Nunca viram pessoas tão estranhas e alienadas da proteção espiritual e da mãe natureza.
            Em poucos dias, a campanha educativa de Naim foi para os veículos de comunicação. Todos duvidavam do êxito dessa publicidade e não tinham idéia da reação do público almejado. A imagem de Taynah, Irapuru e do Baby estava acompanhada dos seguintes dizeres:
Vocês sabem qual é a diferença entre o mamão de corda e 500 gramas de silicone? Os dois não escapam da lei da gravidade, porém o segundo, antes da queda, pode sofrer uma enorme explosão, até maior que a da Bolsa de Nova Iorque. Por isso, não importa se a “fonte” é natural ou superficial, a queda será inevitável. Em alguns casos, pode-se até acionar o seguro por lesão ao consumidor pela venda de mercadoria danificada. Então, nada justifica você negar ao seu filho o direito à amamentação.

            A profecia se realizou com uma repercussão estrondosa, rumo ao abismo. Para a elite feminina brasileira, adeptas do corpo perfeito, foi uma ofensa e o ápice do desprezo serem comparadas a uma raça primitiva, marginalizada e em extinção. Pediram retaliação e receberam apoio dos cirurgiões, preocupados com a brusca queda das operações estéticas.
            Os religiosos apelaram para o atentado ao pudor. Pela idade do indiozinho Irapuru, era impossível ter leite suficiente naqueles seios, apesar de volumosos, para duas crias/espécies tão distintas, mas era sim, um simples ato de orgia para saciar a sede sexual da índia Taynah.
            A massa da população ficou dividida. Uns consideravam uma prova de amor incondicional e sem fronteiras de uma mãe. Para outros, era como um ato sexual de zoofilia, ou seja, apenas um prazer sexual no contato com animais.
            Foi o triste fim de um profissional tão competente em que a vaidade desmedida não considerou o côncavo e o convexo de uma sociedade que impõe seus valores, mesmo que camuflados por máscaras que insistem em cair e todos fingem não ver.


[1] 20.dez.1992. "Índia amamenta filhote de porco do mato", de Pisco Del Gaiso. Foto flagrou índia da tribo Guajás, no Maranhão, amamentando filhote de porco do mato criado na aldeia. Venceu Prêmio Internacional Rei da Espanha. Fonte: Folha 19/02/2011.
visitado em 28/04/2011
[2] As mulheres dessa tribo também cuidam dos animais de estimação, muito numerosos na tribo, e eles, muitas vezes, são até amamentados pelas mulheres mais jovens. http://guaja.tripod.com/id2.html, visitado em 28/04/2011

Amigos



     Meu pai já me dizia que um homem louco não sabe reconhecer a própria casa. Faz algum tempo que acordo sozinho neste apartamento vazio, lembrando a época de minha infância. Lá em Itaquaquecetuba quando criança ouvia meus pais me perguntando se eu havia feito amizade com alguém. Nada dizia. Nossa casa possuía um vasto quintal, portão de madeira sempre trancado com um cadeado enferrujado. Não havia laje, era luxo naquela época. Hoje penso que aquela casa era o meu melhor amigo.
     Era naquele lugar que eu estava habituado em assistir televisão com meus amigos. Tudo estava em preto e branco, mas a minha imaginação se assemelhara, naqueles momentos, em um eterno arco-íris.  Era sempre antes da escola. Víamos o He Man, Os Superamigos, o Thor e tantos outros heróis que estimulavam a nossa imaginação para qualquer aventura fora da realidade dos adultos. Só não gostava quando chegava à hora do almoço ou do lanche. Minha mãe nunca oferecia nada a eles. E a resposta que ela dava era sempre a mesma.  - Deixa de besteira moleque. Eles pouco se importavam nem sequer criticava o pão durismo de minha mãe; até porque eu também não frequentava a casa de nenhum deles. Estava sempre só no meu quarto ou na sala com a minha televisão.
     No meu quarto, depois que meus amigos iam embora, me deitava no catre e olhava o reboco das paredes; parecia o rosto enrugado de uma senhora de cem anos de idade. A cama era feita de lastros de couro, não tínhamos colchão. Eu não me importava. Fitava a parede e os pequenos buracos e desvios nela se tornavam rotas de fuga para algum lugar que hoje se perdeu em minha memória. Ria. Meus pais não gostavam – Tá besta, menino!
     Não tenho irmãos, a casa era pequena, o quintal grande, a imaginação maior ainda. Então chamava meus amigos sempre depois das aulas. Hoje já não me lembro da voz de nenhum deles; acredito que nem conversávamos direito. Eles ficavam esperando o ir e vir da escola; pena que eles estudavam em escolas diferentes. Na verdade, eu duvidava que até estudassem um dia. Quando batia o sinal do recreio, era uma festa, juntava meus colegas de escola e brincávamos de policia e ladrão ou rela e ajuda. Subíamos pelas velhas carteiras postas no pátio, pulávamos o muro que dava na quadra e a correria só acabava no momento que surgiam os professores.
     Éramos pobres. Penso que foi isso o motivo das primeiras brigas de meus pais. Tirando as desavenças que foram aumentando com os anos. Tudo era perfeito se comparado a hoje que estou só e sem família. O que mais tenho saudade dessa época eram as brincadeiras de polícia e ladrão. Outro dia, algumas crianças aqui da rua brincavam, não de policia e ladrão que já está ultrapassada, mas sim de polícia e traficante. Colocavam umas tábuas velhas que no inicio pensei ser um quartel general, mas era só a favela mesmo. Os policiais tentavam invadir a boca e os traficantes procuravam defender a cocaína que era um saco de farinha de trigo, provavelmente furtado da casa de um deles. O engraçado era que a polícia sempre perdia. Me deu uma vontade louca de entrar na brincadeira, mas meus vinte e cinco não me permitira mais tais excessos.
     Depois das aulas costumava relatar as brincadeiras e os ocorridos para meus amigos, já que eles não estudavam mesmo e estavam presente sempre quando eu os chamava. O que não era raro, pois antes do divórcio de meus pais, havia diversas brigas em casa, tudo ficava tão cinza que eu me sentia sozinho, até começar trazê-los a minha casa. Concentrava-me para isso, fechava os olhos, esquecia a embriaguez de meu pai e as reclamações de mãe e quando voltava à realidade, lá estavam. No início, pensei que meus pais se importariam ou com o horário ou quantidade de garotos que dormiam lá em casa. Nada. A nossa amizade, resumia em assistir aos desenhos.
     Minha mãe quando me pegava conversando com eles dizia.  - Ficou louco Juninho! Acho que ela nunca gostava de nossos papos. Até que um dia o vizinho da casa onde minha mãe trabalhava foi parar no hospital, após quebrar uma porta de vidro. Ele havia dito. Eu tenho a força! E tome soco na porta da sala. Só sei dizer que o menino não perdeu totalmente os movimentos da mão, porque aquela família tinha muito dinheiro. O tempo foi passando e nós começávamos assistir Cavaleiros do Zodíaco. Nas nossas brincadeiras eu era sempre o Pegasus. Mamãe se irritava com isso e me perguntava sobre as garotas, pois eu já era bem crescidinho para ver desenhos. Ela acreditava que eu tinha vergonha do lugar onde morávamos, era a casa mais humilde da rua e uma das mais pobres da cidade. Eu nem me importava. Mamãe trabalhava muito e queria outra vida.
     Mamãe vivia telefonando para meu pai, não sei direito a conversa; eu chegava próximo ao telefone; ela mudava a conversa e depois me passava o fone. Meu pai era pior ainda, sempre com voz de embriagado, repetindo sempre a mesma pergunta.  - Você tá bem? Hoje todos se foram, minha mãe morreu num acidente de trabalho, bateu a cabeça ao descer pela escada da casa onde trabalhava. Meu pai desapareceu logo em seguida. Às vezes, como hoje, me levanto e volto à mente naquela velha casa onde não havia nada e ao mesmo tempo tudo.
     Foi aqui nesse apartamento que mamãe me contou sobre um menino que havia ganhado da tia uma fantasia do superman. Gostava tanto do homem de aço que no aniversário em que ganhou a fantasia, correu, vestiu e voou da janela do décimo andar. Minha mãe não gostou quando perguntei se ele havia voado bastante. Não sei o motivo, mas fora com esta conversa que meus amigos resolveram me visitar menos. Começou no dia seguinte quando minha mãe me levou até aquela mulher, não me lembro o nome dela, mas todos a chamavam de Doutora. Ela me dizia tantas coisas diferentes e inteligentes que enfadaram meus amigos. Eles eram mais crianças do que eu.




Os Portais

Dali

Adriana Bechelli


adormece meu corpo
sobre o cais
harmoniosa(mente)
criaturas pairam
em direção o nu estático
alimentam e domam
a desmedida inocência
no entardecer
o tempo é o templo
de um olhar
mira
nasce o rito
romã
entre vê 
um elefante


Kronos


Adriana Bechelli



o relógio marca seis horas
diante da minha inquietação corre o tempo
não queira saber o que se passa
a frente de um minuto

todos os relógios marcam seis horas
o tempo de cada um
é des(semelhante)

do mesmo modo o se ajustar
até o tempo precisa do outro pra direcionar
assim fazemos jus das amarras do relógio
em outros cíclicos são como efêmeras

são seis horas e um minuto....

O professor


Leandro Ramires Rodrigues

     Sexta-feira, já passa da meia noite. Não vai demorar muito. Poucas pessoas no mundo possui a paciência e a destreza necessária para que eu faço. A primeira vez foi uma libertação; os jornais noticiaram o fato, mas logo esqueceram, como toda violência nesta sociedade. Vejo o ônibus parando no ponto da D Pedro I, logo depois de cruzar a Capitão. Minha pesquisa estava correta, lá vem ele. Ligo o motor do carro.

     Hoje não trabalho. Minhas aulas vão até quinta-feira de manhã e isso me consome a alma. Lavei o carro, retirei a placa original e coloquei a falsa que eu havia comprado em um desmanche de carros roubados. Contato neste mundo é tudo. Moro sozinho em um apartamento velho no centro da cidade. Quando resolvi ser artista; entendi que deveria comprar um carro apropriado, somente para esse uso. Meu pai não dirige, então deixo o gol vermelho na garagem dele, em Camilópolis. Ainda hoje pela manhã meu pai me perguntou como eu fazia para lidar com tanta bagunça na sala de aula. A gente sempre cria um escape.

     Gosto de conversar com o velho porque ele não sabe nada. Havia me perguntado se eu me preocupava com a polícia que poderia me parar devido ao insulfilme que eu coloquei no carro. Nada disse. Quando o velho saiu para o boteco, aproveitei para lubrificar o trinta e oito cromado que eu tinha comprado na Ilha. Como eu disse, contato é tudo. Informação também. Neste meu serviço, é necessário muita pesquisa; por isso passei mais de um ano me informando a respeito daquele aluno, lugar onde mora, tipo de gosto, baladas que frequenta, facebook, orkut e por aí vai. Também mandei vários currículos para poder sair agora no meio do ano, daquele colégio particular. Tudo que consegui foi aumentar minha carga horária no Estado. Sai. Minha arte só pode ser executada duas vezes ao ano, no máximo. No geral demoro mais, eu fico irritado, mas fazer o quê? A arte não admite falhas.

     À tarde, resolvo tomar um banho bem quente. É inverno, preciso manter a alma limpa, penso nas férias daqui uma semana. Revejo todas as informações a respeito do aluno. Também tenho que contar com a sorte. No inicio da noite; passo com o carro no meu destino várias vezes, o revólver, deixei em casa. Se eu levar uma geral, não vão me prender por porte de arma ilegal. Ele está lá. No ponto, provavelmente vai para Figueiras encher a cara. O que de certa forma facilitará todo o trabalho. Deixo o carro em um estacionamento no centro e faço uma turnê pela Figueiras. De um orelhão telefono para o celular dele. Barulho. Conseguir esse número não foi fácil. Esse cara é um desses bostas de aluno que além de não fazer nada, fica na sala conversando e rindo alto. Certo dia me disse que ele pagava o meu salário, outro dia o diretor disse a mesma coisa; aguentei um pouco, ainda não tinha concluído minha pesquisa. A representação também é uma arte. Primeiro, a gente abre um orkut para adicionar os alunos, depois um facebook, até que a presa cai. Nesse meio, se o telefone não veio através do próprio aluno, sempre tem outro que passa.

      Nada respondi quando ele disse alô, estava identificando o som, o lugar que ele se encontrava. Tudo indica que é o Mezzanine. Adolescente do ensino médio adora esse lugar, principalmente os do terceiro ano. Coloco a toca da blusa, fico em um lugar discreto até que vejo o rapaz saindo, pelo jeito que anda está embriagado. Corro até o estacionamento e busco o meu carro. Se ele tivesse um carro ou os pais o buscassem, então seria muito difícil terminar meu trabalho; teria que esperar outra oportunidade. O cálculo nestas horas é importante.

     Chego primeiro. Se ele não parar em nenhum lugar, daqui alguns minutos, desce do ônibus.  Ele deve pegar o último. Só me faltava o infeliz voltar de taxi... Resolvo abrir a garrafa térmica com o chocolate quente que sempre trago quando resolvo trabalhar até mais tarde. É o ônibus. Lá vem ele. Ótimo, está sozinho! Ligo o motor para facilitar, coloco a garrafa do lado e visto as lufas. Aumento o volume do som, Carmina Burana, aprendi a gostar de música clássica escutando o Schizophrenia do Sepultura.

     Oi professor, O que faz aqui uma hora dessas, fala com um voz de bêbado. Cobrar a lição de casa. Puxo o trinta e oito e atiro no meio de sua testa. Retiro rapidamente o tênis do moleque, celular e carteira. Jogo tudo dentro do carro e vou embora, deixando o corpo jogado na calçada. Levou apenas um minuto. Estou melhorando, o outro havia levado sessenta e cinco segundos. Quando chegar em casa, vou quebrar o celular e queimar a carteira junto com o dinheiro e os documentos. Já o tênis posso guardar por uns dias antes de entregar a qualquer mendigo da Praça do Carmo. Penso que da próxima vez será uma aluna. Quem será? Eu sai da escola mas tenho certeza que na segunda-feira, os professores estarão chocados com a morte e, mesmo assim, alguns comentarão que foi uma benção. Olho do lado e me aborreço; esqueci a garrafa térmica aberta. O chocolate esfriou.