terça-feira, 7 de junho de 2011

Atiaîa

Pisco Del Gaiso

 Leandro Ramires Rodrigues
     De um apartamento de classe média, Iurema observa pela janela a geografia que apaga o aracê da zona leste de São Paulo. Imagina-se pequena entre aqueles prédios vizinhos e mutuados de gente sem propósito. Lá na caatinga o verde das matas transborda a humanidade de vida a romper zênites que para o homem branco seria impossível.
     Karajá sonhava em estudar em São Paulo. Iurema que era a irmã mais nova achava estranha essa vontade de branco em índio. Não dizia nada porque além de ser mais nova, sabia que ninguém lhe daria atenção. Havia ganhado o respeito na aldeia quando Ci lhe entregou a vida de Taîasu em suas mãos. Alimentava aquele bicho como se fosse o próprio filho; para o Pajé, a vida contida nos seios de Iurema era a resposta que Ci dava a modernização da aldeia. O índio não deveria perder o contato com a natureza, onde todas as vidas estão contidas em uma só.
     Não era nenhuma novidade para Iurema alimentar um porco; foram os olhos do Pajé que desenharam um novo destino para aquela ação. Nessa época, Karajá se encontrava em São Paulo cursando educação física em Santo Amaro. Foi através do irmão que Iurema teve reconhecimento no Brasil, pois o irmão havia servido de amanajé de seu povo; ainda que de forma involuntária, quando saiu da faculdade no período da manhã, lá estava o fotógrafo da Folha de São Paulo. Queriam realizar uma reportagem na aldeia e o acaso os levou lá em Mato Grosso, onde Iurema foi fotografada amamentando Taîasu. 
     Iurema lembrava bem as palavras do Pajé a respeito da lenda de Tapeyára. Houve uma época em que um cari fora ao mato casar porcos para a alimentação de sua família. Encontrou uma porca com vários leitões. Cari não pensou duas vezes em escolher a mãe que era mais gorda. Matou. Os outros perseguiram-no até que cari subiu em uma árvore onde do alto consegui exterminar mais três porcos furiosos. Os animais cavaram até a raiz da árvore, derrubando cari que fora levado à presença de Tapeyára, mãe de todos os porcos. Cari ficou aprisionado. Durante esse tempo comeu uixis, buritis ou biribás que era o alimento que os porcos davam a ele. Cari, um dia, se deitou a sombra de uma árvore, à beira do rio e, quando todos os porcos dormiam, ele a escalou e passou pelos galhos de uma árvore para outra, saltou n'água e se escondeu na copa de uma árvore do outro lado da margem. Havia levado a herá deles consigo. Quando se aproximava do aracê, os porcos descobriram a sua fuga e cercaram todo o igapó à sua procura sem, ao menos, descobri-lo. Ele retornara a casa, onde encontrou mulher e filhos que já o imaginava morto em algum lugar da caatinga. Ele convidou a mulher, o irmão e toda a família para caçarem os porcos da sua companhia. Ficaram todos na canoa. Cari soprou duas vezes a herá. Logo surgiu, em tropel, um gigantesco número de porcos, dos quais ele matou a maioria. Passaram se vários arás até que apareceu seu outro irmão, vindo de uma terra longínqua. O irmão perguntou como cari havia matado tanto taîasus. Roubou a herá do cesto do irmão e ainda zombou dele por ter sido capturado pelos animais. Ele foi pelo caminho da terra e soprou a herá que estava com cari. Os taîasus chegaram e o caçaram sem piedade, foi comido vivo pelos porcos. E outra vez a herá voltou a Tapeyára, mãe de todos os porcos.
     Lembrar histórias desse tipo perdera o sentido. Da janela, Iurema observa o carro do corretor de imóveis. Venderia tudo, incluindo os móveis do irmão. E voltaria para a aldeia. E mesmo assim não escaparia da presença dos brancos. O homem branco havia construindo outra floresta, artificial, mas que aos poucos estava engolindo toda a caatinga, todo o verde, toda a vida. O mesmo acontecera com a foto, Iurema havia achado engraçado quando o irmão havia lhe contado que em um curso de literatura que por acaso resolvera frequentar em Santo André. Ali foi mostrada a imagem da irmã amamentando Taîasu, um rapaz do curso afirmou que a foto não era foto. Iurema era só uma japonesa fantasiada de índia. Não entendia o porquê uma imagem, não era mais uma imagem para os brancos.  Era sempre homem branco que vez ou outra aparecia na aldeia e era bem recebido por todos, como é o caso do professor Ítalo que os visitara recentemente, quando a morte do irmão já saíra dos jornais para se tornar menos que uma nota de rodapé na memória da grande História.
     Ítalo também havia recebido em casa o cacique da aldeia, junto com um grupo que chegava a quase vinte índios, pensara ingenuamente que receberia três ou quatro índios em sua casa no Rio de Janeiro; comprou várias alfaces, legumes, tudo na feira. Depois das duas viagens na van, o cacique havia lhe dito que alface, eles comiam na aldeia. Queriam pizzas. Por um momento, Iurema riu ao lembrar essa história que Ítalo lhe havia contato, quando retornara com os índios a aldeia. O cacique e todos os outros viam com bons olhos aquele pequeno romance de Iurema com Ítalo, pensavam que ele seria aturasá, não era, e por isso foi embora. Era mais fácil um índio se tornar branco, pensara Iurema. Também lembra constantemente das palavras do cacique que dizia não entender homem branco. Quando visitara Ítalo, eles passaram em um mercado, lá fora um dos índios apontava para um mendigo escorado no muro do mercado. Olha lá! Tá com fome, não entendo homem branco, aqui dentro cheio de comida e lá olha, passando fome! Quer comida... Não entendo.
     Hoje nada disso mais traz alegria. Karajá havia sido agredido na cidade de Parelheiros quando foi visitar, longe de minhas vistas, um amigo guarani. Encontrou outro que estava embriago e sendo espancados por dois caris. Os caris, penso eu, são o añaretá do índio. Alguns são de alma aeté, como é o Ítalo. Ainda me lembro de meu irmão naquele hospital de Goiás, antes de chegar a nossa aldeia. Morreu de traumatismo craniano, dias depois. Lá o branco não será mais festejado. Toca a campainha, Iurema sabe que ao se livrar do corretor; voltara à aldeia e Taîasu irá se tornar parte da grande atagûasu.

sábado, 4 de junho de 2011

CACOS DE UMA VIDA INÚTIL


Flávio Mello
Qual será a real diferença entre a bunda de uma mulher e o resto da vida, não por que quando eu caminho fico olhando para elas, nesse momento a vida se esvai no ato, e as mulheres se tornam porta-bundas, apenas isso, ele pensa, ignoto como é, ao descer do ônibus e caminhar pela praça em direção à Radial Leste, trajeto arbóreo e compassado de todo santo dia.
CACOS DE UMA VIDA INÚTIL
ou tanto faz
Chove muito...
O metrô lhe parece algo surreal, não compreende o dispositivo, nem tenta, para ele tanto faz, utiliza-o muito pouco, assim como os hospitais e os bancos, odeia ambos, como odeia fila e a espera nos bancos em corredores sujos, longínquos que cheiram a infecção. Pensa nisso enquanto acomoda o aparelho de MP3 no bolso de moedas da calça, Engraçado, esse bolso, será que alguém o usa, se pergunta, metafisicamente, tanto faz, continua seu caminho. Passa pelos mesmos transeuntes, talvez só os carros não sejam os mesmos, na banca de jornal as revistas de putaria em evidência, Será que esses caras só vendes esse lixo, as de fofoca também têm destaque, alguém na novela ficará pobre e será pego traindo a protagonista, Eu queria ser como o Zé Mayer, de presença, a mulherada deve ficar toda serelepe com o cara, é, ser Zé Mayer deve ser bacana, beijar a morena da novela, qual é mesmo o nome dela..., ah tanto faz.
Uma moça de capa segue o mesmo caminho, mais atrás, sem guarda-chuva, pensa em oferecer-lhe o seu, ou caminharem juntos, mas esses dias de serial killer por ai é foda, ela se assustaria, nem todo mundo é dado a gentileza nesse inferno em que vivemos. Ao entrar no corredor do metrô percebe que não havia fechado o guarda-chuva e um imbecil fica rindo dele, um riso apodrecido, pobre de pessoas ignorantes, daqueles que passam as noites em casa vendo Superpop ou Pânico na TV, ou pior, Gugu, Ele mudou de emissora, eu acho, tanto faz, idiota. Fecha o guarda-chuva e com o olhar diz ao cidadão, Vai tomar no cu.
Uma senhora lhe estende a mão, pede esmolas, não gosta do que vê, mas se acostumou, antes quando era mais sensível chorava ao ver mendigos, pedintes, cegos ou aleijados pelas ruas, se lembra de uma vez em que uma família procurava restos de carne em um caminhão que recolhe os ossos nos açougues, passou o resto do dia chorando, na época era digitador de uma empresa de válvulas em São Bernardo do Campo. Hoje não, só criança consegue arrancar dinheiro dele, ou seja, continua sensível e menos idiota.
Outra bunda passa por ele, muito linda, não pode dizer o mesmo do suporte dela, mas é a vida, a mulher que passou não pode ter tudo o que quer, uma bunda linda daquelas e ainda ser maravilhosamente linda, complicado. O MP3 muda de música, ele nem percebe, o fone de ouvido já é parte de seu corpo, a música é apenas estado de fuga, odeia ouvir as conversas das pessoas, todas medíocres e inacabadas. A vida poderia ser menos nociva, veja bem leitor, a persona em questão não é amarga, apenas não anda na melhor fase de sua vida, está no limite, esperando a gota d’água para transbordar ou rebentar o dique.
Pensa em uma moça que há muito não encontra, a vida não anda fácil para ele, quer um refugio, mas falta coragem, em sua vida mulheres se despregam do andor da pureza e mostram suas garras vermelhas e o odor de luxúria, mas ele tenta, tenta manter-se fiel ao casamento, que tanto faz para ele nessa altura.
A vida é mesmo um aquário onde nós os homens somos os polvos molengas e sem cor, as mulheres peixinhos coloridos, o tempo uma moreia, o mundo se prende nas paredes transparentes do existir e as complicações, as dores, os amores, a ração medíocre que recebemos de Deus. Bela merda de vida, pensa ele olhando o céu que não para de suar. Na verdade a vida é uma matemática, como ele é, sempre foi, terrível nessa área... sofre as consequências de não entender a tabuada.
22h 30

A MISSA


Regiane Coutinho

Num domingo pela manhã, estávamos tomando café quando notei que o Pedrinho ainda não tinha saído da cama, fui até o quarto pra apressá-lo, pois íamos à missa.
– Vamos meu filho, larga essa preguiça e levanta!
– Não papai, não gosto de missa prefiro dormir. Pois é, os filhos sempre carregam algo nosso.
– Acho que hoje você precisa ouvir uma história sobre seu pai.
– Adoro ouvir histórias papai, pode começar.
Todo domingo, quando o papai era garoto, era a mesma ladainha, cobria a cabeça quando ouvia o barulho do chinelo da vovó arrastando na cozinha para passar um café bem forte se fosse fraco já era motivo de briga, e se acontecesse isso era capaz do meu pai desistir de acompanhá-la.
Mamãe era tal como uma beata, era sagrado no domingo pela manhã ir a missa, mas eu não gostava  de fazer  parte desse momento, porque não ficar em casa dormindo até tarde? Ela insistia em me chamar:
– Zino, levanta você vai atrasar todo mundo.
Esse era meu apelido, um garoto pequeno, é... franzino, daí até no adjetivo encontraram um diminutivo e pegou.
Inventei febre, dor de barriga e nada adiantava, levantava me arrastando até a cozinha enquanto maquinava um plano observava meu pai mergulhando seu imenso bigode na caneca de café.
– Jesus, Maria e José o povo já está saindo vamos seus lerdos.
Como nosso bairro era muito pequeno saíamos como numa procissão, todos juntos os vizinhos se cumprimentando, as mulheres colocavam as fofocas em dia, era nesse momento que eu andava feito caranguejo.
Quando a mãe dava fé, já era tarde ela já estava na porta da igreja e eu na porta de casa.
Os anos foram passando enfim chegou minha juventude, mas a missa ainda não frequentava.
Até que conheci a Gerusa, ela era uma moça linda, seu sorriso dizia tudo que eu precisava saber, eu a conheci na missa, esperava por sua vó na porta da igreja, fiquei apaixonado. A partir desse dia assisti muitas missas e o dia mais marcante foi diante de um Padre no dia em que eu disse:
– Até que a morte nos separe.
– Papai que lindo! Então vamos logo, mudei de idéia e a mamãe não gosta de atrasos.

III – Lobos


 Leandro Ramires Rodrigues

O riso risca seu rosto em fase de meia lua
A lua não revela à alma ao Viajante que continua...
Dentro de ti há um sangue ausente e um veneno crescente
Dentro de mim há um espelho que me viaja a lugar nenhum,
Minúsculo grão
E os dentes que deforma a boca e se alimenta d’alma...
Da janela meus olhos alcançam o Viajante em fantasia de soldado
A terra lhe dorme o sono de rios contidos em soltos copos

                                       
Um cão sem dentes é a boca do homem em manta de universo
Ainda não sei a resposta que o Viajante dará a vida,
A vida me faz uma resposta em fantasia de terno e gravata
A vida para alguns é uma voz e para tantos um ouvido
Fecho a janela e percebo que nem a casa havia
O espaço aberto é minha cama ou outro momento da cabeça
O cão sou eu que estendo a mão para o Viajante,
Antes que a noite floresça em sol e o horizonte cresça


II – À noite.




                                        Chego ao morro com o peso do corpo e morro,
                                        Do outro lado o espaço se rasca ao som do samba
                                        Essa festa é a roupa que lhe empresta a morte
                                        Viro fantasma e atravesso a parede
                                        O Viajante está no meio de proibidas fumaças vivas
                                        Na sala, os pais contam a Miséria e espera o Viajante
                                        Viagem de todo dia na cidade alma, concreto de ilusão
                                        Volto para meu quarto: - onde eles estão?

                                
                                        O convite me apertou a mão além da parede
                                        Alegria da noite molda a figura de tristeza na manhã
                                        E o grito me rompendo a mente como sol apaga o abismo
                                        O Viajante reduzido de amores é resíduo de família
                                        Antes o eu nele existia como um sorriso sem verniz
                                        E o tempo dos pais está lhe rascando o bolso carne,
                                        Rosto de uma arquitetura sem memória destrói o Viajante
                                        No trabalho, o bom dia lhe revela o afago da desgraça



Leandro Ramires Rodrigues

Percepção



Leandro Ramires Rodrigues 

                   Para Wall.
Teus olhos de árvore em fogo transluzem,
o amargo frio que respira o eco de minh’alma
Assim és sol e talvez uma neblina que se vai a estio,
e envolve em manta os mornos olhos de teu amigo


E faz da tua geografia um rosto inclinado a luz do sagrado
Enigma que vejo ao vento dançando em teus cabelos sem agrados
Como uma estrela rela ao mar a deserta luz que lhe sobrou na manhã calma
Assim és no mundo, flor de lótus, cujos olhos respiram uma yelda oculta no infinito...


imagem: http://renaclo.blogspot.com/2010/06/blog-post.html

Abstrato


Leandro Ramires Rodrigues 




Um retrato em retalhos de imagem em bordas de mares d’agonia
quando translúcidas águas reluzem o lume da vida no meio
eu nomeio tantas vozes no silêncio dos olhos da madrugada
e o riso se torna em máscara mas cara do mundo são plumas
contornam um rosto em tantos traços o mesmo carnaval, o ritmo
explosão que se mistura no desenho do concreto à imagem da margem
Pulsam palavras, oceanos repelem mares, como ondas de vapor


O tom, som, cores e flores não fazem o desenho – são!
arquitetura lingüística que risca a gilvaz de tantas almas
porta aberta ao nada que sai do nada como entra aos olhos a chuva
transborda em cachoeiras de avenidas a memória do espelho
geometria de cidades, corpos ocos no vazio espaço do papel
e a esperança consome a luz, raspa o verniz e fica o desespero
Sem máscara o abstrato é o ritmo da vida em fulgor de mil sóis