De um apartamento de classe média, Iurema observa pela janela a geografia que apaga o aracê da zona leste de São Paulo. Imagina-se pequena entre aqueles prédios vizinhos e mutuados de gente sem propósito. Lá na caatinga o verde das matas transborda a humanidade de vida a romper zênites que para o homem branco seria impossível.
Karajá sonhava em estudar em São Paulo. Iurema que era a irmã mais nova achava estranha essa vontade de branco em índio. Não dizia nada porque além de ser mais nova, sabia que ninguém lhe daria atenção. Havia ganhado o respeito na aldeia quando Ci lhe entregou a vida de Taîasu em suas mãos. Alimentava aquele bicho como se fosse o próprio filho; para o Pajé, a vida contida nos seios de Iurema era a resposta que Ci dava a modernização da aldeia. O índio não deveria perder o contato com a natureza, onde todas as vidas estão contidas em uma só.
Não era nenhuma novidade para Iurema alimentar um porco; foram os olhos do Pajé que desenharam um novo destino para aquela ação. Nessa época, Karajá se encontrava em São Paulo cursando educação física em Santo Amaro. Foi através do irmão que Iurema teve reconhecimento no Brasil, pois o irmão havia servido de amanajé de seu povo; ainda que de forma involuntária, quando saiu da faculdade no período da manhã, lá estava o fotógrafo da Folha de São Paulo. Queriam realizar uma reportagem na aldeia e o acaso os levou lá em Mato Grosso, onde Iurema foi fotografada amamentando Taîasu.
Iurema lembrava bem as palavras do Pajé a respeito da lenda de Tapeyára. Houve uma época em que um cari fora ao mato casar porcos para a alimentação de sua família. Encontrou uma porca com vários leitões. Cari não pensou duas vezes em escolher a mãe que era mais gorda. Matou. Os outros perseguiram-no até que cari subiu em uma árvore onde do alto consegui exterminar mais três porcos furiosos. Os animais cavaram até a raiz da árvore, derrubando cari que fora levado à presença de Tapeyára, mãe de todos os porcos. Cari ficou aprisionado. Durante esse tempo comeu uixis, buritis ou biribás que era o alimento que os porcos davam a ele. Cari, um dia, se deitou a sombra de uma árvore, à beira do rio e, quando todos os porcos dormiam, ele a escalou e passou pelos galhos de uma árvore para outra, saltou n'água e se escondeu na copa de uma árvore do outro lado da margem. Havia levado a herá deles consigo. Quando se aproximava do aracê, os porcos descobriram a sua fuga e cercaram todo o igapó à sua procura sem, ao menos, descobri-lo. Ele retornara a casa, onde encontrou mulher e filhos que já o imaginava morto em algum lugar da caatinga. Ele convidou a mulher, o irmão e toda a família para caçarem os porcos da sua companhia. Ficaram todos na canoa. Cari soprou duas vezes a herá. Logo surgiu, em tropel, um gigantesco número de porcos, dos quais ele matou a maioria. Passaram se vários arás até que apareceu seu outro irmão, vindo de uma terra longínqua. O irmão perguntou como cari havia matado tanto taîasus. Roubou a herá do cesto do irmão e ainda zombou dele por ter sido capturado pelos animais. Ele foi pelo caminho da terra e soprou a herá que estava com cari. Os taîasus chegaram e o caçaram sem piedade, foi comido vivo pelos porcos. E outra vez a herá voltou a Tapeyára, mãe de todos os porcos.
Lembrar histórias desse tipo perdera o sentido. Da janela, Iurema observa o carro do corretor de imóveis. Venderia tudo, incluindo os móveis do irmão. E voltaria para a aldeia. E mesmo assim não escaparia da presença dos brancos. O homem branco havia construindo outra floresta, artificial, mas que aos poucos estava engolindo toda a caatinga, todo o verde, toda a vida. O mesmo acontecera com a foto, Iurema havia achado engraçado quando o irmão havia lhe contado que em um curso de literatura que por acaso resolvera frequentar em Santo André. Ali foi mostrada a imagem da irmã amamentando Taîasu, um rapaz do curso afirmou que a foto não era foto. Iurema era só uma japonesa fantasiada de índia. Não entendia o porquê uma imagem, não era mais uma imagem para os brancos. Era sempre homem branco que vez ou outra aparecia na aldeia e era bem recebido por todos, como é o caso do professor Ítalo que os visitara recentemente, quando a morte do irmão já saíra dos jornais para se tornar menos que uma nota de rodapé na memória da grande História.
Ítalo também havia recebido em casa o cacique da aldeia, junto com um grupo que chegava a quase vinte índios, pensara ingenuamente que receberia três ou quatro índios em sua casa no Rio de Janeiro; comprou várias alfaces, legumes, tudo na feira. Depois das duas viagens na van, o cacique havia lhe dito que alface, eles comiam na aldeia. Queriam pizzas. Por um momento, Iurema riu ao lembrar essa história que Ítalo lhe havia contato, quando retornara com os índios a aldeia. O cacique e todos os outros viam com bons olhos aquele pequeno romance de Iurema com Ítalo, pensavam que ele seria aturasá, não era, e por isso foi embora. Era mais fácil um índio se tornar branco, pensara Iurema. Também lembra constantemente das palavras do cacique que dizia não entender homem branco. Quando visitara Ítalo, eles passaram em um mercado, lá fora um dos índios apontava para um mendigo escorado no muro do mercado. Olha lá! Tá com fome, não entendo homem branco, aqui dentro cheio de comida e lá olha, passando fome! Quer comida... Não entendo.
Hoje nada disso mais traz alegria. Karajá havia sido agredido na cidade de Parelheiros quando foi visitar, longe de minhas vistas, um amigo guarani. Encontrou outro que estava embriago e sendo espancados por dois caris. Os caris, penso eu, são o añaretá do índio. Alguns são de alma aeté, como é o Ítalo. Ainda me lembro de meu irmão naquele hospital de Goiás, antes de chegar a nossa aldeia. Morreu de traumatismo craniano, dias depois. Lá o branco não será mais festejado. Toca a campainha, Iurema sabe que ao se livrar do corretor; voltara à aldeia e Taîasu irá se tornar parte da grande atagûasu.