domingo, 24 de abril de 2011

Ego


Leandro Ramires Rodrigues 

Caminhava e caminhava. Todo dia Andirá saia ao trabalho, ônibus cheio, trem lotado e continuava. Já fizera algum tempo que havia se perdido no devaneio. – Preciso ir embora logo. Imaginava-se no banho tão logo pudesse ouvir o sinal que marcava às cinco horas da tarde. A indústria, ele não mais sabia onde ficava. Nunca havia lhe passado na cabeça o rosto do dono. Era um vazio que só lhe mandava continuar. Tocou o sinal. Andirá se tivesse alguma coisa, guardaria no armário, mas naquele dia achou estranho em pensar ser pobre. Estava apenas com as roupas do corpo e alguns trocados na carteira.
Logo que começou a andar na rua; sentiu certo tremor acompanhado de uma incrível tremedeira – eu não bebo. Continuou descendo por aquela rua sem nome, aliás, imaginava que toda rua daria para algum lugar totalmente diferente e assim, fugiria daquele lugar. Não havia rotas alternativas e a rua dava para um muro branco e sem saída. No muro observava a paisagem de uma praia, surfistas crianças construindo seus castelos e muito sol. Andirá ficara ali parado e quando percebe estar atraindo olhares interrogativos ao seu redor, saiu. Na verdade, sentira medo de alguém chamar a polícia, mas isso tudo era uma besteira, imaginava a cena, mostrando o RG e afirmando o local onde trabalhava, era ali. Ali onde? Iria dizer o policial, ali é ali e só.

Andirá redobrou o passo, não queria que ninguém o parasse; sentiu-se estranho cada vez mais, pois não sabia onde estava o local de trabalho, o mesmo que ele havia deixado uma hora atrás. – Não tem importância. Sua mãe havia lhe ensinado a não confiar em ninguém. Evitar conversas com desconhecidos, por isso nunca conversava; houve um tempo que Andirá esquecera o som da própria voz. Então saiu gritando por entre as ruas, lembrando como deveria articular as palavras para continuar existindo. Só queria voltar para casa, sentiu um aberto no coração e lembrou a falecida mãe – Continue meu filho, nunca pare! Queria achar a casa onde tem um retrato da mãe, colocado sobre a estante e com a intenção de manter na memória o rosto materno. Andirá tremia ao imaginar que um dia passaria um fantasma e recolheria também os traços e a aparência da mãe. O fantasma existia sim, repetia consigo mesmo, o fantasma já levou a voz de minha mãe.

- Tudo isso é uma tremenda besteira! Ainda hoje levantei de uma cama quente e me vesti. Ônibus e trem cheios a mesma rotina do trabalho. Andirá alcança o ponto de ônibus sentindo que nunca havia estado naquele lugar. Caminhara muito antes de chegar ao muro e o muro só o vez voltar atrás, retroceder como tantos outros lugares. Precisava de um ponto. Era ali que tomaria o ônibus, naquele ponto, já que um ponto é sempre a partida para algum lugar e todos os lugares estão ligados entre si, pensara Andirá um dia ser de todos os lugares. Hoje estava tímido e por isso começara a imaginar que um ponto nem sempre é um ponto. Havia outro ponto de ônibus do outro lado da rua. Aquele o levaria para lugares opostos, como um dia outros o fizeram e mesmo assim continuou a existir. Também não queria voltar de trem, espaço que liga dois pontos opostos. Há muitas pessoas lá se empurrando na vida; Andirá quando era mais novo sentiu vontade de se jogar nos trilhos, abraçá-los, mas não fez porque percebeu que abraçar os trilhos seria o mesmo que estar acariciando as grades e seus braços não teriam força para romper esse cárcere. Ainda mais agora que ficara velho.

Parado observava o fluxo de pessoas entrando e descendo do ônibus; ninguém olhava para seu rosto, era um fantasma até notar que o mesmo acontecia com todos. Então sentiu vontade de rir, rir como nunca até arrebentar os pulmões e quando percebeu que de sua boca já saia os primeiros vestígios de uma boa risada. Ficou com medo, haveria de passar um guarda ou um alguém qualquer lhe dando uma bofetada no rosto e lhe dizendo na cara - Ficou louco, seu bosta! Merdinha do caralho que fica aí no meio atrapalhando a vida dos outros.

Os outros são sempre os outros e passara a vida se contendo para não prejudicar os outros. Agora queria saber quem era. Abre a carteira e busca por um RG, uma identificação qualquer, não havia nada além de uns poucos trocados, fruto do trabalho e um nome em um papel branco, Andirá. Colocou a carteira no bolso da calça e entrou no ônibus mais vazio. Estava cansado de lotação. Percebeu que o caminho era o oposto realizado no dia anterior, também não lembrava direito do dia anterior, só que havia trabalhado; produzido em uma máquina da qual ele deveria retornar amanhã e continuar assim até o dia de parar. Mas parar e ir para onde? –Hoje não vou conseguir voltar para casa, isso o aborrecia, já fazia alguns anos que não retornava para casa, salvo poucas exceções como ontem, antes de sair estava em casa. - Por que eu fui sair?

Desceu do ônibus, estava com sede e no primeiro bar que encontrou pediu uma coca cola. Foi atendido e ali ficou por mais um tempo. Sentiu fome, mas não queria gastar seu dinheiro honesto. Se abrigou em outro ponto de ônibus, talvez haja tempo de voltar atrás. Um carro para e um bando de moleques o agride. Andirá não entende o motivo de tantos chutes e socos, mas a dor que foi aumentando, agora diminui e por um momento pensou que aquelas pancadas fossem uma libertação maior. Fechou os olhos e esperou o golpe derradeiro, mas este não veio. Algum barulho lá do outro lado da estrada havia espantado os libertadores de sua sorte. A sura o deixara em péssimo estado; queria parar, mas não sabia como. Na calçada virou para o canto e dormiu pensando que amanhã precisava trabalhar. E lá no fundo ouviu o sussurro de sua mãe que dizia – Andirá você é meu filho, continue, continue...   

Um comentário:

  1. NOSSA! NOSSA! NOSSA... É LONGO, MAS CONFESSO QUE NÃO CONSEGUI PARAR DE LER. TIVE QUE IR ATÉ O FINAL. ISSO É UM GANHO DOS BONS, SABIA? GOSTEI MUUUUITO, BRAIN STORM, ÍNTIMO E AO MESMO TEMPO PÚBLICO. JURO QUE GOSTARIA MUITO DE FAZER PARTE DESSA TURMA...

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